domingo, 23 de novembro de 2008

E então?


Apesar de já ter havido experimentações hipertextuais anteriores à internet, foi a rede mundial de computadores que trouxe novas possibilidades de rompimento com as práticas literárias comuns. O meio fluido e mutável oferecido pela internet proporcionou um terreno fértil para o desenvolvimento do hipertexto na literatura. No entanto, como foi desenvolvido pelo trabalho, muito se experimentou e pouco se teorizou. A literatura é uma das áreas mais férteis e antigas do conhecimento humano, por isso é natural o estranhamento diante da algo tão revolucionário como a literatura digital. É preciso não se render nem à tecnofobia e nem à tecnolatria. A primeira é demasiado dogmática e apocalíptica, ao passo que a segunda, excessivamente eufórica e integrada. A internet não significa o fim da literatura, apesar de romper paradigmas. E nem é, também, sua completa salvação e solução. Tudo o que inova e revoluciona provoca extremismos, sim, mas é preciso ter cuidado. É preciso dosar e entender a literatura segundo a concepção de Jenaro Talens, na qual ela é um lugar de dupla resistência: contra a nostalgia do sujeito central e proprietário privado do texto e contra o sujeito descorporeizado do simulacro. Ou seja, nem tanto aos átomos e nem tanto aos bits. O meio termo é a utopia da literatura atual. Ela precisa se reinventar, para cumprir com seu secular dever de resistir à nostalgia do central e à profusão do vazio.
E a você, leitor, que agora também pode ser autor, deixamos a decisão:
Este vídeo, com todas as potencialidades "multimídia", pode ser considerado uma obra literária?


Teoria da Literatura e Hipertexto: Como?!

Quando se fala em Hipertexto na Literatura, é muito comum encontrar fortes resistências. Na realidade, os problemas colocados vão além da questão hipertextual e entram na inquietude em se definir teoricamente o que é, de fato, Literatura. A discussão sobre o lugar ocupado pela Literatura em um mundo praticamente digitalizado é nada além de uma continuação do pensamento crítico da chamada “Teoria da Literatura”.
A Teoria Literária sempre teve seu eixo paradigmático ancorado nas concepções propostas há milênios por Aristóteles e Platão. Segundo a teoria desenvolvida a partir destes filósofos, as obras literárias necessitam possuir início, meio e fim. O que é totalmente abalado a partir do hipertexto, um sistema vertical, rizomático e livremente mutável. A partir do uso hipertextual da literatura na web, a representação é substituída pela simulação, a obra se torna interativa e o autor se vê questionado no papel de proprietário privado do texto. Aos leitores cabe a montagem do texto, pois a obra se torna aberta. Por isso, o hipertexto significou uma enorme quebra paradigmática no mundo literário.
Na verdade, apesar de já ter havido experiências hipertextuais com a enciclopédia, os dicionários e até mesmo em obras literárias impressas, a teia de hipertexto na rede mundial de computadores é uma verdadeira revolução. A teia hipertextual de rede permite uma velocidade inédita, com a possibilidade de se passar de um nó a outro em segundos. Além disso, ainda foi trazido o caráter da multimidialidade, com a associação do texto a imagens e sons. O tempo levado dentro de uma biblioteca para acessar as informações de uma enciclopédia é infinito se comparado à velocidade da conexão quase instantânea de dados dentro da aldeia global. É possível afirmar que a diferença mais marcante entre o hipertexto anterior à rede e o atual é uma questão de velocidade, proporção e praticidade.
A Literatura foi um dos principais campos a sofrer influência da passagem radical do mundo de átomos para esse mundo de bits. As duas diferenças básicas ocorridas com a Literatura dizem respeito à modificação do estatuto do leitor e à concatenação de discursos em uma rede articulada. Os leitores se tornam autores. Eles deixam de receber o texto passivamente e começam a modificá-lo, além de serem constantemente levados a acessar a obra na ordem que bem entendem. Um mesmo texto pode ser constituído por partes e links adicionados por diferentes pessoas. As ligações hipertextuais servem como instrumento de auxílio à interpretação, multiplicando a produção de sentidos e enriquecendo a leitura.
O ciberespaço, fluido e metamórfico, rompe completamente com as relações estabelecidas entre autor/texto e leitor. É como se o texto deixasse de ser propriedade privada do autor para se tornar passível de alterações constantes do leitor. É claro que a base sempre será a elaborada pelo autor, mas a interação do leitor é de uma intensidade sem precedentes. Antes da rede, o hipertexto tinha uma pequena potencialidade no âmbito da leitura. É possível afirmar que obras de James Joyce, Umberto Eco e até Machado de Assis sejam de certo modo hipertextuais. No caso de Machado, é inegável o completo desrespeito à linearidade narrativa, especialmente em Memórias Póstumas de Brás Cubas. No entanto, quem se encarrega de escolher os caminhos tortuosos do texto é o próprio Machado de Assis, ou, essencialmente, Brás Cubas. O leitor possivelmente se perderia no enredo, caso pulasse o pequeno capítulo a respeito da filosofia das botas apertadas. Apenas a rede, ou propriamente a internet, trouxe tanta interação e mutabilidade de centros na Literatura.
Na realidade, as possibilidades de criação Literária com o advento da rede ultrapassam os anseios de Vanevar Bush e Theodor Nelson e os sonhos de Mallarmé e Borges. Muito mais do que a volatilização do referente, a Literatura Digital significa a sua modificação em autorreferente. A Nova Literatura, se fundamentando no hipertexto, desestabiliza as noções elementares de literalidade, texto, autor e leitor, empurrando-os a um grande vazio conceitual, ansioso por um novo estudo metodológico. Talvez seja este vazio o grande incômodo dos críticos da Literatura de Hipertexto. Ela ainda não se adéqua com perfeição à teoria alguma. Ao entrar no ciberespaço, a Literatura pode ter abandonado os antigos cânones e sofrido uma imaterialização, o que não significa sua morte, mas o contrário. Pierre Lévy chega a dizer que a virtualização contemporânea realizou a tarefa de abrir o texto, e nos deu a possibilidade de, até mesmo, reinventar a própria escrita.

Como o Hipertexto se aplica à Literatura?

A partir da integração do computador como instrumento necessário e indispensável no nosso cotidiano, a linguagem “html” (“hypertext markup languages”) acarretou mudanças nas técnicas de produção de textos e nas formas de percepção do leitor. A decodificação dos signos lingüísticos se tornou um processo mutável de recorte, seleção e manipulação, o que possibilita uma multiplicidade de interpretações das produções literárias. A cada leitura ou atualização no ciberespaço, o sujeito leitor pode detectar a introdução de um novo elemento e a construção de uma nova problemática.
As expressões textuais emergentes geraram um novo tipo de narrativa que não possui um enredo dominante ou começo e fim, diferentemente do meio impresso tradicional, uma vez que a leitura obedece a uma seqüência pré-estabelecida pelo autor. A seguir veremos alguns exemplos de como a mobilidade, a interatividade e o dialogismo na literatura eletrônica proporcionam ao leitor uma outra visão acerca da arte escrita.
A ficção eletrônica Patchwork Girl, da autora americana Shelley Jackson, publicada em 1995 pela Eastgate Systems, é um bom exemplo de como o leitor pode participar ativamente da obra, navegando de acordo com suas escolhas e criando seu próprio enredo.
A narrativa, que é construída pela estrutura do hipertexto e se baseia em dois livros, Frankenstein de Mary Shelley e Patchwork Girl of Oz de L. Frank Baum, apresenta uma fábula relacionando o tema corpo-máquina com as características escriturais das poéticas tecnológicas. A história é dividida em cinco segmentos: Quilt, Journal, Graveyard, Story e Broken Accents, e cada um a leva em múltiplas direções através de ligações de partes do corpo de uma mulher por meio de texto e imagem. Na parte Quilt, encontra-se uma mistura de espaços da história criados pela combinação de frases de diferentes fontes. O Journal representa o escrito de Mary Shelley sobre o seu primeiro encontro com a criação feminina. A seção seguinte, Graveyard, consiste numa lista com o nome das várias partes e órgãos do corpo que saem do monstro feminino. Em Story, o monstro passa do século XVIII para o século XX num curto espaço da história, disponibilizando duas versões ao leitor, uma a de amante ou a de monstro. Ambas levam a um final semelhante. E por último, em Broken Accents, a história é levada a cinco ligações distintas e algumas delas irão girar em torno das mesmas repetidamente. Contudo, o leitor poderá optar por uma ligação e criar sua história.
Outro exemplo de simulação e interatividade é site CiberPoesia, onde o leitor possui múltiplas formas de interação. A home page é dividida em duas partes principais, ciberpoemas e poesia visual. Na primeira parte, é possível notar o dinamismo do espaço para o internauta. Ele pode montar seus próprios poemas, ler de diversas formas uma mesma frase, como está exemplificado no computador intitulado Van Gogh, ou interpretar os sons e a disposição dos poemas mostrado no computador sete, por exemplo. Já na parte dos poemas visuais, a mobilidade das imagens e a configuração das frases transmitem ao leitor a idéia de dinamicidade, rompendo com a lógica estática e linear dos livros de poesia. Ali também encontramos sugestões para outros sites, reafirmando a relação estruturada em rede, ligada por links.
No meio impresso também podemos destacar exemplos de literatura hipertextual, porém as dificuldades de romper com as linearidades acabaram por gerar obras limitadas. Entre eles, “O Jardim das veredas que se bifurcam”, de Jorge Luiz (1982), um romance que tenta integrar vários enredos e resoluções possíveis, e “Rayuela”, de Julio Cortazar (1966), em que o leitor tem a possibilidade de escolher diferentes versões de uma mesma história. Apesar da tentativa, segundo Sérgio Luiz Prado Bellei em seu artigo Hipertexto e Literatura, o leitor de Cortazar pode apenas imaginar um número limitado de versões alternativas da história, enquanto que no conto de Borges o próprio autor nega as possibilidades da escolha do enredo ao concluir o texto com um assassinato.
Desta forma, percebemos que o meio impresso possui grandes dificuldades na utilização do recurso do hipertexto. Já a mídia eletrônica pode exagerar na construção de narrativas sem fechamento graças aos recursos disponibilizados pelo computador.

O Hipertexto na Literatura Digital


As características hipertextuais estão presentes também no texto impresso, já que eles apresentam títulos e subtítulos, que marcam a sua não-linearidade. A leitura do texto digital nos possibilita visualizar outros textos e discursos em um acesso ilimitado. As notas de roda pé em um texto contínuo, por exemplo, também nos remetem a outras obras, assim como os links dos hipertextos. Porém, existe uma diferença entre um e outro. Nos textos contínuos, temos que terminar ou interromper a leitura, para procurarmos os textos citados em nota. No hipertexto digital, esse acesso pode ser imediato, como no caso de “nota de roda pé”,. . Toda leitura de certo modo é hipertextual, seja no texto impresso ou digital.
Com os textos na internet, passam a serem possíveis variados formatos e significados, permitindo ao leitor se tornar um co-autor da produção. A literatura digital se utiliza de vários recursos: imagens, sons, gráficos, textos e hipertextos. São formas de o público leitor interagir com o meio e conseguir captar muito mais informações dentro dessa dinâmica.
A Grande Inovação: os E-books
Os e-books foram a grande novidade desse meio de literatura digital, tornando-se logo apreciáveis ao leitor. Atualmente, alguns escritores utilizam apenas o meio virtual para exibir os seus textos. O custo é menor e, talvez, a difusão seja maior. Contudo, a prática de leitura de um livro virtual não significa o abandono da leitura do livro impresso. É necessário ressaltar a importância do diálogo entre ambientes midiáticos diferentes.
O processo de digitalização trouxe novo ânimo à leitura, pois permitiu que o leitor a desfrutasse de modo diverso. Exemplos disso são os livros virtuais que, além de possuírem enredos interessantes, permitem a interação do leitor com os textos. Em alguns e-books há espaços para anotações e marcadores de páginas, além de trazerem dicionários embutidos. Para aqueles que adoram a sensação de virar a página, alguns e-books também apresentam recursos que imitam esta dinâmica. Enfim, o livro virtual não surge acabar com o livro impresso, mas uma alternativa para o leitor que procura novos meios de divertimento e experimentação.

O Hipertexto na Literatura Impressa

Partindo do pressuposto de que o pensamento humano se organiza em uma lógica hipertextual, podemos considerar também a prática da leitura como parte dessa dinâmica. O texto só passa a possuir algum significado a partir da leitura específica de cada leitor. É como se o processo de leitura encadeasse pensamentos em forma de hipertexto. O leitor é o responsável por recortar, conectar o texto a outras informações e selecionar passagens que mais lhe chamem a atenção. Porém, antes de entendermos a configuração da leitura e do pensamento humano em bases hipertextuais, é preciso entender um pouco sobre a evolução desse processo no decorrer da história. Primeiro, podemos mencionar a criação da tipografia dos tipos móveis, desenvolvida por Gutenberg no século XV, modelo de impressão que permitiu uma grande difusão de conhecimento. Outra mudança que influenciou no desenvolvimento da leitura hipertextual foi a transformação do livro de rolo (volumen) em livro de cadernos e páginas (códex). Essa passagem do rolo ao códex foi o que tornou o livro um objeto facilmente manuseável, pois permitiu uma leitura não-linear com uma localização não seqüencial dos assuntos. Outro fator que favoreceu o surgimento de uma cultura hipertextual foi a passagem da leitura em voz alta para a leitura silenciosa e introspectiva, durante a Alta Idade Média. Alguns autores ousaram em experimentar uma literatura inovadora, afim de permitir uma leitura diferenciada e combinatória. Esse tipo de texto foi desenvolvido, por exemplo por Arlindo Machado em “O Sonho de Mallarmé” (1993), por Ítalo Calvino, em “O castelo dos destinos cruzados” (1991), por Julio Cortázar, em "O jogo da amarelinha" (1966) e por Jorge Luis Borges em "O jardim dos caminhos que se bifurcam" (El jardín de senderos que se bifurcan, 1941).

Hipertexto e Literatura?

A história do hipertexto começa em 1945 com Vannevar Bush e seu artigo “As We May Think”. Foi então que o cientista americano apresentou o Memex – Memory Extension. Sua idéia era fazer um dispositivo que utilizasse o modelo de associação da mente humana para fazer a catalogação de arquivos.
Essa é a base da idéia, mas o termo hipertexto surgiu mais tarde. Foi na década de 60 que o filósofo e sociólogo americano, Theodor Nelson, propôs o termo que temos hoje. A idéia de Nelson era construir uma estrutura de texto não-sequencial, através da qual o leitor pudesse escolher a melhor maneira de ler o texto. Para ele seriam “blocos de textos conectados entre si que formariam diferentes itinerários para o usuário”.
Foi ancorado nessa idéia que Nelson idealizou o Projeto Xanadu. Sua intenção era reunir todos os tesouros literários e científicos do mundo para que milhões de pessoas pudessem acessá-los, interagir, comentar.
O surgimento da World Wide Web, na década de 90, deu forma ao que antes era apenas um projeto. As primeiras experimentações em linguagem hipertextual aconteceram com a literatura. O jornalismo on-line surgiu um tempo depois. Mas disponibilizar literatura de forma hipertextual ainda requer estudos, já que muitos sites de hiperficção são links quebrados. Marcos Palacios (2005) explica que, “a vasta maioria das obras de ficção hipertextual disponibilizada na Internet tem data de produção situada no período de 1994/1999. De lá para cá não parece haver ocorrido muito movimento ou desenvolvimento nesse setor.”
Apesar da estagnação, a literatura em linguagem hipertextual é uma tendência que não pode ser ignorada. Com este blog não nos propomos a estudar as transposições literais para a web, tal como no Projeto Guttemberg. A idéia é pensar a literatura usando a principal ferramenta da internet: o hipertexto.